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29 DE ABRIL DE 2025
Registro civil: o direito que abre portas para os povos indígenas
Mutirões de registro civil levam cidadania a milhares de indígenas em todo o Brasil, promovendo inclusão social, resgate de direitos e reconhecimento da identidade cultural.
Após 60 anos de união, Idelino Fernandes e Justina Cesário, do povo Tikuna, conseguiram realizar o sonho de oficializar o casamento civil em sua comunidade no Amazonas. O casal indígena só pode se casar no papel em 2024, porque finalmente obteve a certidão de nascimento durante um mutirão de documentação que chegou à aldeia Tikuna Feijoal. Histórias como a deles exemplificam como o acesso ao registro civil de nascimento – um direito fundamental – abre portas para uma série de outros direitos antes inalcançáveis, promovendo cidadania plena para povos indígenas em todo o Brasil.
Sem o registro civil de nascimento, uma pessoa simplesmente “não existe” perante o Estado. Isso a impede de acessar direitos básicos e a deixa à margem das políticas públicas. A documentação civil é indispensável para o exercício da cidadania, que, por sua vez, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil previstos na Constituição Federal de 1988. Em outras palavras, ter uma certidão de nascimento é o primeiro passo para que outros direitos sejam efetivados. Com o registro em mãos, uma pessoa indígena pode enfim:
- Ter identidade oficial: obter carteira de identidade (RG) e CPF, documentos necessários em praticamente todas as situações da vida civil.
- Acessar serviços públicos: matricular-se em instituições de ensino, usar o SUS para atendimento de saúde e acessar programas sociais governamentais.
- Exercer direitos políticos e trabalhistas: tirar título de eleitor para votar e ser votado, assinar carteira de trabalho, receber benefícios previdenciários como aposentadorias e pensões.
- Formalizar relações jurídicas: casar-se no civil, registrar os filhos na certidão dos pais e até mesmo fazer valer direitos sucessórios (herança).
Além disso, o registro civil assegura identidade jurídica. “Dar nome às pessoas” significa que elas passam a existir formalmente diante da lei, podendo reivindicar seus direitos e participar plenamente da sociedade, como explica Gilmar Salgado, servidor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) envolvido nas ações de documentação. “Elas vão passar a existir judicialmente. isso é muito necessário para que todos os indígenas tenham como existir na sociedade.”
Historicamente, os povos originários enfrentam múltiplas barreiras – geográficas, culturais, linguísticas e burocráticas – para acessar o registro civil. Por isso, o Brasil carrega ainda hoje um déficit de documentação entre a população indígena, conhecido como sub-registro. Dados recentes evidenciam avanços importantes, mas também a distância a percorrer: de acordo com o Censo 2022 do IBGE, o percentual de crianças indígenas de 0 a 5 anos registradas em Cartório subiu de 67,3% (em 2010) para 89,1% em 2022. Entretanto, esse índice permanece abaixo da média nacional (99,2%) e 5,4% das crianças indígenas dessa faixa etária continuam sem nenhum registro – proporção seis vezes maior que na população geral. Em algumas regiões remotas, especialmente no Norte do país e em terras indígenas isoladas, a falta de registro civil ainda atinge cerca de 8% das crianças, revelando um desafio persistente.
Força-tarefa leva Cartórios às aldeias
Para enfrentar esse cenário e erradicar o sub-registro civil de nascimento, uma grande mobilização nacional vem unindo órgãos públicos e Cartórios em ações de inclusão registral por todo o Brasil. Nos últimos anos, ganharam força os mutirões itinerantes que levam os serviços dos Cartórios de registro civil às comunidades indígenas, muitas vezes localizadas em áreas remotas. Essas iniciativas permitem emitir documentos como certidões de nascimento (inclusive tardias, para quem nasceu há anos e nunca foi registrado), carteiras de identidade (RG), CPFs, certidões de casamento e óbito, entre outros.
Uma das principais ações coordenadas nacionalmente é a Semana Nacional do Registro Civil – “Registre-se! Sua história tem nome e sobrenome”, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) e diversos órgãos. Em sua segunda edição, realizada de 13 a 17 de maio de 2024, a campanha mobilizou os Cartórios em 25 estados e no Distrito Federal com foco em grupos vulneráveis – população em situação de rua, indígenas e pessoas privadas de liberdade, especialmente egressos do sistema prisional. O objetivo central foi combater o sub-registro e ampliar o acesso à documentação básica, levando cidadania a quem mais precisa.
Ao longo da Semana “Registre-se” de 2024, foram recebidos mais de 60 mil pedidos de certidões em todo o país. Só entre os indígenas, mais de 8,5 mil pessoas de diversas etnias foram atendidas nessa segunda edição do mutirão nacional. “A nossa participação é fundamental. Sem o trabalho dos registradores civis, não haveria a materialização deste direito, que já está consagrado na Constituição Federal. É por isso que estamos aqui: para assegurar que esse direito dos povos indígenas não fique apenas no papel, mas se torne realidade na vida de cada cidadão indígena deste país”, ressaltou Devanir Garcia, presidente da Arpen-Brasil.
A estratégia dos mutirões de registro envolve uma ampla articulação interinstitucional. Geralmente, as ações contam com a participação do Judiciário estadual, Ministérios Públicos, Defensorias, governos locais e órgãos federais. A Funai, principal órgão, atua como ponte cultural: disponibiliza tradutores e mediadores para respeitar as diferenças linguísticas e orientar os cidadãos indígenas sobre procedimentos legais. “Nós, da Funai, no contexto de rede de proteção social aos povos indígenas, realizamos junto aos demais órgãos, desde 2023, diversos mutirões de documentação. Articulamos a logística, a triagem, mas, principalmente, o acompanhamento aos indígenas, facilitando o diálogo e a democracia, buscando garantir o direito ao nome”, pontuou Andrea Prado, coordenadora-geral de Promoção dos Direitos Sociais da Funai. Nos mutirões, explica Andrea, cada etapa do atendimento é adaptada às particularidades culturais de cada povo, de forma a romper barreiras históricas de exclusão.
Do planejamento à execução, as ações de inclusão registral tornaram-se prioridade também na esfera governamental. O Ministério dos Povos Indígenas (MPI), criado em 2023, integrou-se aos esforços para levar cidadania às aldeias. “O enfrentamento do sub-registro civil de indígenas é um trabalho em desenvolvimento desde o governo de transição. Com esta incidência no Conselho Nacional de Justiça e a publicação da portaria 74, nós, povos indígenas, conseguiremos avançar sobre o desafio de emissão de documentos em Terras Indígenas, com os nomes tradicionais respeitados, bem como vamos trabalhar pela resolução da situação dos povos indígenas transfronteiriços”, afirmou Cris Tupã, diretor substituto do Departamento de Direitos Sociais Indígenas do MPI. Ele se refere à criação, no âmbito do CNJ, de um grupo de trabalho dedicado a propor soluções permanentes para o sub-registro entre povos indígenas – iniciativa que conta com a participação do MPI e de outros órgãos desde o final de 2024.
As ações de campo já alcançaram aldeias de norte a sul do Brasil. Somente em 2023, a Funai apoiou 47 mutirões de documentação em comunidades indígenas, atendendo mais de 22 mil indígenas em diferentes regiões. Foram emitidas primeiras e segundas vias de certidões de nascimento, registros tardios para adultos que nunca tiveram certidão, milhares de carteiras de identidade e CPFs. Em uma terra indígena no Acre, por exemplo, dez aldeias do povo Kaxinawá (Huni Kuin) foram atendidas em parceria com o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Justiça: 374 carteiras de identidade, 84 CPFs e 37 certidões de nascimento de segunda via foram emitidos em apenas dois dias de trabalho.
Já no Maranhão, etnias Guajajara, Kanela, Krikati e Gavião foram documentadas em uma série de mutirões coordenados pelo Tribunal de Justiça local, incluindo a emissão de registros de nascimento tardios e retificação de nomes para incluir a etnia e a aldeia de origem nas certidões. Essa possibilidade de adequar os registros civis à identidade indígena está prevista desde 2012 em norma conjunta do CNJ, que permite registrar o nome indígena escolhido pela pessoa, acrescentando a etnia como sobrenome e informando a aldeia de nascimento no documento. Em dezembro de 2024, uma nova resolução conjunta do CNJ e do Conselho do Ministério Público simplificou ainda mais esse procedimento, eliminando a necessidade de intermediação da Funai ou MP: basta a declaração da comunidade e testemunhas para efetivar a mudança na certidão. “Os nomes indígenas conectam-nos à língua, à tradição, à espiritualidade, à nossa relação com a terra e os ancestrais. Eles são parte de nossa história e cultura”, celebrou Joênia Wapichana, presidente da Funai, ao destacar o avanço que essas medidas representam na reparação histórica e na autodeterminação dos povos originários.
Cidadania recuperada e novas gerações de olhos no futuro
Para as comunidades beneficiadas, a chegada do registro civil marca o início de uma nova era de direitos. “A gente sabe que, hoje, não consegue fazer nada sem documentos. Essa ação é muito importante para que a nossa comunidade possa recuperar os documentos e talvez conseguir um emprego”, ressalta a professora Eliziane Antunes, da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Em muitas aldeias, adultos e idosos que nunca tiveram certidão de nascimento passam a ter, pela primeira vez, uma identidade civil reconhecida. Jovens que só possuíam o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI) – documento interno da Funai – finalmente obtêm a certidão de nascimento em Cartório, válida em todo o território nacional. E as crianças registradas desde cedo já não enfrentarão as mesmas dificuldades que seus pais e avós enfrentaram para comprovar quem são.
Os esforços conjuntos também trazem resultados imediatos que transformam vidas. Comunidades inteiras relatam maior acesso a políticas públicas após os mutirões. Em 2023 foi realizada na comunidade de Barra do Corda, no Maranhão, e contou com 200 atendimentos. As etnias Guajajara e Kanela receberam os serviços de expedição de certidão de nascimento (tardia), retificação de nome e para inclusão da etnia, além de atendimento de demandas judiciais. Em fevereiro de 2024, um indígena de 109 anos de idade recebeu sua primeira certidão de nascimento por meio de uma força-tarefa judicial no interior do Amazonas, assegurando a ele direitos básicos dos quais esteve excluído por décadas.
Do ponto de vista institucional, as iniciativas de inclusão registral têm sido vistas como um dever do Estado e um pacto de justiça social. “(A criação do Registre-se!) foi um ato de muita grandeza, onde interagimos com vários órgãos responsáveis pela emissão de documentos, demonstrando um pacto que envolveu Estado, municípios, Poder Judiciário e Cartórios nessa ação integrada e articulada em torno da garantia de direitos”, avaliou Bruno Renato Teixeira, secretário nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Enquanto o Brasil comemorou o Dia dos Povos Indígenas neste mês de abril, histórias como a de Idelino e Justina simbolizam um processo de resgate da cidadania e da identidade que está em curso nas aldeias. Muito além de um documento, a certidão de nascimento representa o reconhecimento de que cada indígena é plenamente cidadão brasileiro, com nome e sobrenome, digno de todos os direitos. E graças à união de lideranças indígenas, órgãos públicos e Cartórios, esse direito fundamental deixa de ser apenas uma promessa no papel para se tornar realidade na vida de milhares de pessoas que, agora sim, existem oficialmente.
Fonte: ANOREG/BR
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